sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Discurso do papa Francisco aos bispos da República Democrática do Congo


REDAÇÃO CENTRAL, 03 Fev. 23 / 09:26 am (ACI).- No quarto dia de sua visita apostólica à República Democrática do Congo, o papa Francisco teve um encontro com os bispos hoje (3) na sede da Conferência Episcopal Nacional do Congo (CENCO).

A seguir, o texto completo das palavras do papa Francisco:


Amados irmãos Bispos, bom dia!

Estou feliz por poder encontrar-vos e, de coração, agradeço a calorosa recepção. Obrigado a dom Utembi Tapa pela saudação que me dirigiu e por vos ter dado voz com as suas palavras: agradeço-vos a coragem com que anunciais a consolação do Senhor, caminhando no meio do povo, partilhando as suas canseiras e esperanças.

Foi bom para mim passar estes dias na vossa terra, que representa, com a sua grande floresta, o «coração verde» da África, um pulmão para o mundo inteiro. A importância deste patrimônio ecológico recorda-nos que somos chamados a salvaguardar a beleza da criação e a defendê-la das feridas causadas pelo egoísmo rapace. Mas esta imensa extensão verde que é a vossa floresta constitui também uma imagem que fala à nossa vida cristã: como Igreja, temos necessidade de respirar o ar puro do Evangelho, expulsar o ar poluído da mundanidade, guardar o coração jovem da fé. É assim que imagino a Igreja africana e vejo esta Igreja congolesa: uma Igreja jovem, dinâmica, alegre, animada pelo anseio missionário, pelo anúncio de que Deus nos ama e que Jesus é o Senhor. A vossa é uma Igreja presente na história concreta deste povo, radicada de forma capilar na realidade, protagonista de caridade; uma comunidade capaz de atrair e contagiar com o seu entusiasmo e por isso, à semelhança das vossas florestas, com tanto «oxigênio»: Obrigado por serdes um pulmão que dá fôlego à Igreja universal!

É triste começar um parágrafo com a palavre “infelizmente”, mas tenho que fazê-lo.

Sei bem que a comunidade cristã desta terra também apresenta, infelizmente, outra face. De fato, o vosso rosto jovem, luminoso e belo aparece sulcado pela tristeza e o cansaço, marcado às vezes pelo medo e o desânimo. É o rosto duma Igreja que sofre pelo seu povo, é um coração no qual palpita, com trepidação, a vida das pessoas com as suas alegrias e tribulações. É uma Igreja sinal visível de Cristo que ainda hoje é rejeitado, condenado e desprezado nos inúmeros crucificados do mundo, e chora as nossas próprias lágrimas. É uma Igreja que, como Jesus, também quer enxugar as lágrimas do povo, empenhando-se em assumir as feridas materiais e espirituais das pessoas e fazendo correr sobre elas a água viva e salutar do lado de Cristo.

Convosco, irmãos, vejo Jesus sofredor na história deste povo crucificado e oprimido, transtornado por uma violência que não poupa ninguém, marcado pela dor inocente, constrangido a conviver com as águas turvas da corrupção e da injustiça, que poluem a sociedade, e a padecer em tantos dos seus filhos a pobreza. Ao mesmo tempo, porém, vejo um povo que não perdeu a esperança, que abraça com entusiasmo a fé e imita os seus Pastores, que sabe voltar para o Senhor e entregar-se nas suas mãos, para que a ansiada paz, sufocada pela exploração, por egoísmos de parte, pelos venenos dos conflitos e das verdades manipuladas, possa finalmente chegar como uma dádiva do Alto.

E surge a pergunta: Como exercer o ministério nesta situação? Quando pensava em vós, Pastores do Povo santo de Deus, veio-me à mente a história de Jeremias, um profeta chamado a viver a sua missão num momento dramático da história de Israel, por entre injustiças, abominações e sofrimentos. Passou a  vida a anunciar que Deus nunca abandona o seu povo e dá continuidade aos seus desígnios de paz mesmo em situações que parecem perdidas e irrecuperáveis. Mas, este anúncio consolador de fé, viveu-o Jeremias pessoalmente: foi ele o primeiro a experimentar a proximidade de Deus. Só assim pôde levar aos outros uma corajosa profecia de esperança. Também o vosso ministério episcopal vive entre estas duas dimensões, de que vos quero falar: a proximidade de Deus e a profecia para o povo.

Antes de mais nada gostava de vos dizer: Deixai-vos tocar e consolar pela proximidade de Deus. A primeira palavra que o Senhor dirige a Jeremias é esta: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jer 1, 5). É uma declaração de amor, que Deus grava no coração de cada um de nós e ninguém a pode apagar, tornando-se fonte de conforto no meio das tempestades da vida. Para nós, que recebemos a vocação de ser Pastores do Povo de Deus, é importante basear-nos nesta proximidade do Senhor, «estruturar-nos na oração», passando horas diante d’Ele. Só assim se aproxima do Bom Pastor o povo que nos está confiado e só assim nos tornamos verdadeiramente Pastores, porque nós, sem Ele, nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5).

Seríamos empreendedores, empresários. Seríamos mestres entre aspas, mas não estaríamos cumprindo a vocação do Senhor. Sem Ele nada podemos fazer.

Oxalá não suceda imaginar-nos autossuficientes e, muito menos, ver no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e exercer o poder. Esse feio espírito do carreirismo! E sobretudo que não entre o espírito da mundanidade, que nos faz ver o ministério segundo os critérios de benefício pessoal, que nos torna frios e distantes na gestão daquilo que nos está confiado, que leva servir-se da função em vez de servir os outros, e a deixar de cuidar da relação indispensável que é a relação humilde e cotidiana da oração.

Não podemos esquecer que a mundanidade é a pior coisa que pode acontecer na Igreja, a pior. Sempre me tocou o final do cardeal de Lubac sobre a Igreja. As últimas três ou quatro páginas que dizem assim: A mundanidade espiritual é o pior que pode acontecer. Pior ainda que a época dos papas mundanos e concubinos. É pior. A mundanidade está muito próxima, estejamos atentos.

Amados irmãos bispos, cultivemos a proximidade com o Senhor para ser suas testemunhas credíveis e porta-vozes do seu amor junto do povo. É por nosso intermédio que Ele quer ungi-lo com o óleo da consolação e da esperança! Sois a voz com que Deus quer dizer aos congoleses: sois «um povo consagrado ao Senhor, vosso Deus» (Dt 7, 6). O anúncio do Evangelho, a animação da vida pastoral, a liderança do povo não se podem resolver com princípios alheios à realidade da vida diária, mas devem tocar as feridas e comunicar a proximidade divina, para que as pessoas descubram a sua dignidade de filhos de Deus e aprendam a caminhar de cabeça erguida, sem nunca a abaixar perante as humilhações e a opressão. Por vosso intermédio, este povo tem a graça de ouvir, dirigidas a si, palavras semelhantes às que o Senhor deu a Jeremias: És um povo abençoado; pensei em ti, conheci-te, amei-te, já antes de te formar no ventre materno! Se cultivarmos a proximidade com Deus, sentir-nos-emos impelidos para o povo e nunca deixaremos de sentir compaixão por quantos nos estão confiados. Essa atitude da compaixão que não é um sentimento. É um ‘padecer com’. Animados e fortalecidos pelo Senhor, tornamo-nos, por nossa vez, instrumentos de consolação e reconciliação para os outros, para tratar as chagas de quem sofre, aliviar o sofrimento de quem chora, exaltar os pobres, libertar as pessoas de tantas formas de escravidão e opressão. Por outras palavras, a proximidade a Deus torna-nos profetas para o povo, capazes de semear a Palavra que salva na história ferida da própria terra.

Para penetrar neste segundo ponto – a profecia para o povo –, fixemos novamente a experiência de Jeremias. Depois de ter recebido a Palavra amorosa e consoladora de Deus, ele é chamado a ser «profeta das nações» (cf. Jer 1, 5), enviado a levar a luz onde há escuridão, a dar testemunho num contexto de violência e corrupção. E Jeremias, que come a Palavra do Senhor, tornando-se para ele gozo e alegria do coração (cf. 15, 16), confessa que esta mesma Palavra gera nele uma inquietação irreprimível e leva-o a encontrar os outros para serem tocados pela presença de Deus. «No meu coração – escreve ele –, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (20, 9). Não podemos guardar só para nós a Palavra de Deus, não podemos conter a sua força: ela é um fogo que queima a nossa apatia e acende em nós o desejo de iluminar quem está na escuridão. A Palavra de Deus é um fogo que abrasa dentro e nos impele a sair para fora! Eis a nossa identidade episcopal: abrasados pela Palavra de Deus, em saída para o Povo de Deus, com zelo apostólico!

Mas – podemos perguntar-nos – em que consiste este anúncio profético da Palavra? Ao profeta Jeremias, o Senhor diz: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca; a partir de hoje, dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares» (1, 9-10). São verbos fortes: primeiro, arrancar e demolir para poder, enfim, edificar e plantar. Trata-se de colaborar para uma história nova, que Deus deseja construir no meio dum mundo de perversão e injustiça. De igual modo também vós sois chamados a fazer ouvir a vossa voz profética, para que as consciências se sintam interpeladas e possa cada qual tornar-se protagonista e responsável por um futuro diferente. É necessário, pois, arrancar as plantas venenosas do ódio e do egoísmo, do rancor e da violência; demolir os altares consagrados aos ídolos do dinheiro e da corrupção; edificar uma convivência baseada na justiça, na verdade e na paz; e, finalmente, plantar sementes de renascimento, para que o Congo de amanhã seja verdadeiramente aquele que o Senhor sonha: uma terra abençoada e feliz, nunca mais violentada, oprimida nem ensanguentada.

Mas atenção! Não se trata duma ação política. A profecia cristã encarna-se em tantas ações políticas e sociais, mas a tarefa dos Bispos, e dos pastores em geral, não é esta. É a do anúncio da Palavra para acordar as consciências, para denunciar o mal, para alentar os angustiados e desesperados. Consolai o povo. Consolai, consolai o meu povo. É um anúncio feito não só de palavras, mas também de proximidade e testemunho: proximidade em primeiro lugar aos sacerdotes (os sacerdotes são o primeiro próximo de um bispo: proximidade aos sacerdotes), escuta dos agentes pastorais, encorajamento no espírito sinodal para se trabalhar juntos. E testemunho, porque os Pastores devem ser os mais credíveis em tudo, em particular no cultivar a comunhão, na vida moral e na administração dos bens. Neste sentido, é essencial saber construir harmonia, sem se erguer num pedestal, sem asperezas, mas dando bom exemplo no apoio e perdão recíprocos, trabalhando juntos como modelos de fraternidade, paz e simplicidade evangélica. Oxalá nunca suceda que, enquanto o povo padece a fome, se possa dizer de vós: «eles sem se importarem, foram um para o seu campo, outro para o seu negócio» (cf. Mt 22, 5). Os negócios, por favor, deixemo-los fora da vinha do Senhor! Um pastor não pode ser um negociante, não pode. Sejamos Pastores e servos do povo, não homens de negócios! Pastores!

A administração do bispo deve ser a do pastor. Diante do rebanho, atrás e ao meio. Na frente para mostrar o caminho. No meio para sentir o cheiro. E atrás para ajudar aos que vão mais lentos. E, mais ainda, para deixar o rebanho um pouco sozinho para que veja onde encontra o pasto. O pastor deve se encontrar entre estas três situações.

Amados irmãos Bispos, partilhei convosco o que sentia no coração: cultivar a proximidade com o Senhor para ser sinais proféticos da sua compaixão pelo povo. Peço-vos para não transcurardes o diálogo com Deus e não deixardes que o fogo da profecia se apague por cálculos ou posições ambíguas com o poder, nem por uma vida cômoda e rotineira. À vista do povo que sofre e da injustiça, o Evangelho pede que levantemos a voz. Fê-lo um vosso irmão, o servo de Deus dom Christophe Munzihirwa, pastor corajoso e voz profética, que protegeu o seu povo com a oferta da própria vida. No dia antes de morrer, enviou uma mensagem a todos dizendo: «Nestes dias, que mais podemos ainda fazer? Permaneçamos firmes na fé. Tenhamos confiança que Deus não nos abandonará e que de qualquer lado há de surgir para nós uma pequena luz de esperança. Deus não nos abandonará, se nos empenharmos por respeitar a vida dos nossos vizinhos, independentemente da etnia a que pertençam». No dia seguinte, foi morto numa praça da cidade, mas a sua semente, plantada nesta terra, juntamente com a de muitos outros, dará fruto. É bom recordar, com gratidão, grandes Pastores que marcaram a história do vosso país e da vossa Igreja, de quem vos evangelizou e precedeu na fé. São as vossas raízes, que vos robustecem no ardor evangélico. Penso ainda no bem que recebi conhecendo o cardeal Laurent Monsengwo Pasinya.

Queridos amigos, não tenhais medo de ser profetas de esperança para o vosso povo, vozes unânimes da consolação do Senhor, testemunhas e arautos jubilosos do Evangelho, apóstolos de justiça, samaritanos de solidariedade: testemunhas de misericórdia e de reconciliação no meio de violências desencadeadas não só pela exploração dos recursos e dos conflitos étnicos e tribais, mas também e sobretudo pela força obscura do maligno, inimigo de Deus e do homem. Mas nunca desanimeis! O Crucificado ressuscitou, Jesus vence, aliás já venceu o mundo (cf. Jo 16, 33) e deseja brilhar em vós, na vossa obra preciosa, na vossa fecunda semente de paz. Quero agradecer-vos, irmãos, pelo vosso serviço, o vosso zelo pastoral, o vosso testemunho.

E, chegados ao fim desta viagem, quero exprimir-vos todo o meu reconhecimento a vós e a quantos aqui a prepararam. Tivestes de trabalhar duas vezes, porque, na primeira vez, a visita foi anulada, mas sei que sois misericordiosos com o papa… Sinceramente obrigado! No próximo mês de junho, celebrareis o Congresso Eucarístico Nacional em Lubumbashi: Jesus está realmente presente e operante na Eucaristia; lá reconcilia e cura, consola e une, ilumina e transforma; lá inspira, apoia e torna eficaz o vosso ministério. Que a presença de Jesus, Pastor manso e humilde de coração, vencedor do mal e da morte, transforme este grande país e seja sempre a vossa alegria e a vossa esperança.

E eu gostaria de acrescentar apenas uma coisa. Eu disse: "Sê misericordioso". A misericórdia. Perdoar, sempre. Quando um fiel vem para se confessar, vem pedir a carícia do padre e não o dedo acusador. "E quantas vezes?" "E como o fizeste?" Não, não é isso. Perdoar. "Mas não sei, porque o Código me diz..." Bem, o Código temos de olhar para ele porque é sério. Mas o coração do pastor vai mais longe. Arriscai-vos em nome do perdão, arriscai-vos. Perdoai sempre no sacramento da Reconciliação e desta forma semeareis o perdão para toda a sociedade.

De coração vos abençoo. E, por favor, continuai a rezar por mim. Obrigado


(acidigital)

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