Maria Milvia Morciano - Cidade do Vaticano
Do vértice da cúpula de Michelangelo um fio invisível desce e atravessa a luz, mergulha na escuridão subterrânea, percorrendo assim séculos de história e fases de construção. No fundo, na terra nua, foram sepultados os restos mortais de Pedro, depois de o apóstolo ter sido descido da cruz onde morrera não muito distante, na área do Circo de Nero. Foi sepultado em uma necrópole do Ager Vaticanus em meio a tantas pessoas desconhecidas e pobres como ele.
No entanto, a memória foi mais forte. Aquele local tornou-se imediatamente meta de peregrinações. Ao longo dos séculos, precisame naquele fosso, sucedeu-se uma sequência de fases, com monumentos cada vez mais majestosos: uma simples edícula, o chamado Troféu de Gaio, incorporado mais tarde pelo monumento de Constantino e então a grande reorganização do espaço de Gregório Magno (590-604) e novamente o nicho com o mosaico de Cristo do século IX, o altar de Calisto II (1123) e por fim o de Clemente VIII em 1549, sombreado pelo grande baldaquino de Borromini.
Do esplendor dourado do Barroco ao esplendor resplandecente da Idade Média, da severidade essencial do século IV a uma edícula esbelta e simples sobre a mais extrema pobreza de uma fossa escavada na terra. Ao redor da sepultura forma-se ao longo dos séculos a basílica ad corpus, único caso no mundo cristão de uma construção sagrada nascida diretamente sobre a sepultura de um mártir, mas neste caso trata-se de Pedro, o primeiro bispo da Igreja de Roma .
É uma história complexa aquela envolve o túmulo de Pedro. Com o tempo, a memória resistiu e tornou-se fé, até que Pio XII, em 1939, decidiu realizar escavações arqueológicas, difíceis quer por se tratar de tempo de guerra como pelas condições objetivas.
O túmulo de Pedro é reconhecido. Durante a mensagem radiofônica de Natal de 23 de dezembro de 1950, no final do Ano Santo, o Papa Pacelli anuncia que o túmulo havia sido encontrado: «Mas a questão essencial é a seguinte: o túmulo de São Pedro foi realmente encontrado? A tal pergunta, a conclusão final dos trabalhos e dos estudos responde com um sim muito claro. O túmulo do Príncipe dos Apóstolos foi encontrado».
Reconstituamos com o professor Vincenzo Fiocchi Nicolai, professor de Topografia dos cemitérios cristãos do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã, os acontecimentos destas descobertas, entre as mais sensacionais da história da arqueologia.
«A presença do túmulo de Pedro é demonstrada a partir de toda uma série de elementos - explica o professor - porque precisamente abaixo do altar do final do século XVI foram encontrados alinhados com o altar e, portanto, sob a cúpula, um altar medieval, depois um belo monumento de mármore, que é a caixa que Constantino quis construir para incorporar uma edícula indicando um túmulo que ainda se encontra por baixo. Uma verdadeira série de caixas chinesas. Este túmulo encontra-se em um contexto sepulcral, portanto com outros túmulos que são susceptíveis de datação entre as últimas décadas do século I d.C. e os inícios do II, que confirmam que aquele é, com base neste elemento e em outros, como os grafites, que aquele é o túmulo do apóstolo”.
Fontes escritas
Os grafites são extremamente importantes, porque demonstram claramente a atividade devocional, todo um movimento dos primeiros fiéis da comunidade de Roma que se dirigiram a esta edícula, o famoso tropayon, relatado por Eusébio de Cesareia nas Historiae ecclesiasticae (II 25, 5 –7) fala de Gaio - provavelmente um eclesiástico e com certeza um romano - que, para contrapor a presença dos túmulos de Pedro e Paulo em Roma com as declarações de um herege montanista chamado Proclo, diz: «Posso mostrar-te os troféus dos apóstolos que fundaram esta Igreja, portanto a Igreja de Roma. Se quiseres ir ao Vaticano ou no caminho de Ostia, eu te mostrarei esses troféus."
Trata-se de claras indicações topográficas, que também reaparecem no Liber Pontificalis, que além de recordar, para Pedro, monumentos considerados famosos da época imperial, situam o cemitério entre a Via Aurelia e a Via Trionfale.
O Troféu de Gaio
A edícula a que se refere o professor Fiocchi Nicolai é o Troféu de Gaio, uma estrutura leve com colunas, coroada por um tímpano sob o qual, de fato, estava a sepultura de barro com os restos mortais de Pedro.
«Os troféus – explica o professor – são os elementos monumentais triunfalistas e vitoriosos que assinalam o túmulo de um apóstolo mártir que venceu a morte graças ao martírio. Portanto, podemos datar esta edícula - explica Fiocchi Nicolai - com base na passagem de Eusébio que situa Gaio na época do Papa Zefirino, portanto entre 198 e 217. Esta edícula já existia naquela época e com base arqueológica podemos data-o por volta dos anos 60 do século II. Certamente esta é a edícula que marcou o túmulo”, conclui o professor.
“Pedro está aqui”
«Os grafites se encontram na parede rebocada de vermelho, a famosa parede vermelha. Sobre um fragmento isolado lê-se um conhecido grafite fragmentário que leva o nome de Petros, e na linha seguinte, em grego, um epsilon, um ni e depois um iota. A leitura do fragmento deu origem a muitas interpretações. A mais cativante - recorda o arqueólogo - foi proposta pelo professor Guarducci: Petros eni, ou seja “Pedro está aqui” ou “Pedro está aqui dentro” referindo-se não ao túmulo mas à deposição secundária dos ossos em uma caixa colocada em um nicho na época de Constantino. Uma terceira interpretação seria uma invocação a Pedro caso se interprete as duas letras como parte da palavra eirene, paz em grego: “Pedro em paz”. Pode-se deduzir, conclui Fiocchi Nicolai, que o nome de Pedro nessa posição pode ser atribuído ao do Apóstolo».
Centenas de grafites, testemunho de fé
«Na “parede G”, ou seja, a parede que fecha um dos lados da edícula em um momento posterior, existem centenas de grafites muito difíceis de serem decifrados, mas certamente com nomes, com invocações, com sinais cristológicos que indicam em qualquer forma e em todos os casos que havia uma frequência devocional daquele túmulo que mais tarde se torna então o fulcro de todos os outros rearranjos até o atual altar papal e o baldaquino», observa o professor Nicolai.
São realmente os ossos de Pedro?
Como expressou o Papa Pio XII, à primeira interrogação relativa à identificação do túmulo de Pedro segue-se uma segunda: foram encontrados os ossos de Pedro?
Tem início assim um dos acontecimentos mais marcantes da história da arqueologia e a protagonista foi uma mulher, nascida no início do século XX, arqueóloga e epígrafe florentina, Margherita Guarducci, a quem se deve a decifração dos grafites, sobretudo aquele relativo a Pedro.
As escavações entre 1939 e 1958, promovidas pelo Papa Pacelli, descobriram o túmulo de Pedro, mas sob a edícula de Gaio não havia ossos. «Também foi encontrada uma caixa inseridaem nicho escavado na parede dos grafites em época indeterminada, mas de qualquer forma anterior à de Constantino que envolveu a edícula com uma grande urna de mármore decorada com precioso pórfiro vermelho e que ainda pode ser vista na Capela Clementina. Uma caixa que deve ter tido um significado importante tanto pela sua preciosidade intrínseca como pela sua posição. Os quatro exploradores escreveram no relatório oficial que aquela caixa foi encontrada essencialmente vazia», observa Fiocchi Nicolai.
Um mistério arqueológico
Cerca de dez anos depois, Margherita Guarducci, conduzindo uma investigação de detetive, teria recuperado os ossos por meio do depoimento de um dos trabalhadores que havia escavado durante os primeiros anos de exploração. O trabalhador alegou que em uma caixa de madeira que se encontrava nos depósitos havia ossos que tinham sido retirados durante os trabalhos normais de limpeza sem o conhecimento dos quatro arqueólogos encarregados de acompanhar as escavações.
«Então um operário teria recuperado estes ossos da caixa e colocado-os em uma caixa de madeira que depois foi parar nos depósitos», afirma o professor do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã, que acrescenta: «Estes ossos foram, portanto, atribuídos a posteriori à caixa inserida na parede G também porque havia um pedaço de papel indicando sua origem. Trata-se de fragmentos ósseos que não equivalem a um corpo inteiro. Foi conduzida uma investigação antropológica que, embora genérica, os atribui a um homem maduro que possivelmente seria contemporâneo de Pedro. As investigações não fornecem sequer resultados exatos, mas pode-se dizer que são compatíveis com aquelas do Apóstolo”, conclui Fiocchi Nicolai que assim reconstrói o caso: «Teria acontecido que no momento da criação da cápsula Constantiniana teriam tirado do túmulo o que restava de alguns ossos de Pedro e os teriam colocado na caixa da parede G para protegê-los para sempre."
Um “anúncio feliz”
Durante a Audiência Geral de 26 de junho de 1968, São Paulo VI, recordando as investigações e estudos realizados, ao mesmo tempo que afirmava que «não se esgostariam com isso as pesquisas, as verificações, as discussões e as controvérsias», faz um «anúncio feliz»: «Tanto mais solícitos e exultantes devemos ser, quando tivermos motivos para acreditar que tenham sido encontrados os poucos, mas sacrossantos restos mortais do Príncipe dos Apóstolos, de Simão, filho de Jonas, do Pescador chamado Pedro por Cristo, daquele que foi eleito pelo Senhor como fundamento da sua Igreja, e a quem o Senhor confiou as chaves supremas do seu reino, com a missão de pastorear e reunir o seu rebanho, a humanidade redimida, até ao seu retorno final e glorioso».
As relíquias doadas como símbolo da unidade da Igreja
No relicário de bronze com nove fragmentos ósseos, que pertenceu ao Papa Montini, doados em 2019 pelo Papa Francisco ao Patriarca de Constantinopla, por ocasião da festa dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, está escrito com prudência o verbo putantur, ou seja, que «são considerados de Pedro», observa por fim o professor Vincenzo Fiocchi Nicolai. De fato, a inscrição diz: Ex ossibus quae in Arcibasilicae Vaticanae hypogeo inventi Beati Petri Apostoli esse putantur, «Dos ossos encontrados no hipogeu da Basílica Vaticana, que se acredita pertencerem ao Beato Pedro Apóstolo».
Um fio que não se rompe
A arqueologia é uma ciência que aspira basear-se em evidências, mas são as deduções que muitas vezes conseguem reconstruir a história. No caso do túmulo e dos ossos de Pedro, os elementos que convergem em torno do espaço da Confissão restituem um quadro de verdade porque, além dos vestígios materiais, o que é decisivo é a fé. A fé estratificada ao longo dos séculos por milhares e milhares de peregrinos, papas e santos que entrelaçaram o fio da memória tornando-a indestrutível.
(vaticannews)
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