24 de out de 2024 às 08:00
O papa Francisco publicou hoje (24) uma nova encíclica, sobre o Coração de Jesus. Leia abaixo a partir do V capítulo da encíclica na tradução oficial feita pela Santa Sé do original em espanhol escrito pelo papa. Os capítulos anteriores estão aqui.
CAPÍTULO V
AMOR POR AMOR
164. Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação,não implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades.
UM LAMENTO E UM PEDIDO
165. A partir da segunda grande manifestação a Santa Margarida, Jesus exprime dor porque o seu grande amor pelos homens «não recebia senão ingratidão e friezas. Isto – disse-me Ele – custa-me muito mais do que tudo quanto sofri na minha Paixão»[162].
166. Jesus fala da sua sede de ser amado, mostrando-nos que o seu Coração não é indiferente à nossa reação diante do seu desejo: «Tenho sede, mas uma sede tão ardente de ser amado pelos homens no Santíssimo Sacramento, que esta sede me consome; e não encontro ninguém que se esforce, segundo o meu desejo, por saciar a minha sede, retribuindo um pouco do meu amor»[163]. O pedido de Jesus é o amor. Quando o coração fiel o descobre, a resposta que brota espontaneamente não é uma custosa busca de sacrifícios ou o mero cumprimento de um pesado dever, é uma questão de amor: «Recebi de Deus graças muito grandes do seu amor, e senti-me impelida do desejo de lhe corresponder de algum modo e de lhe pagar amor por amor»[164]. O mesmo ensina Leão XIII, escrevendo que, mediante a imagem do Sagrado Coração, a caridade de Cristo «nos move ao amor recíproco»[165].
PROLONGAR O SEU AMOR NOS IRMÃOS
167. É preciso voltar à Palavra de Deus para reconhecer que a melhor resposta ao amor do seu Coração é o amor aos irmãos; não há maior gesto que possamos oferecer-lhe para retribuir amor por amor. A Palavra de Deus di-lo com toda a clareza:
«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
«Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14).
«Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte» (1 Jo 3, 14).
«Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).
168. O amor aos irmãos não se fabrica, não é fruto do nosso esforço natural, mas exige uma transformação do nosso coração egoísta. Nasce então espontaneamente a célebre súplica: “Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso”. Por isso mesmo, o convite de São Paulo não era: “Esforçai-vos por fazer boas obras”. O seu convite era mais precisamente: «Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5).
169. É bom lembrar que no Império Romano muitos pobres, forasteiros e tantos outros descartados encontravam respeito, carinho e cuidado nos cristãos. Isto explica o raciocínio do imperador apóstata Juliano, que se perguntava porque é que os cristãos eram tão respeitados e seguidos, considerando que uma das razões era o seu empenho na assistência aos pobres e forasteiros, já que o Império os ignorava e desprezava. Para este imperador, era intolerável que os pobres não recebessem ajuda de sua parte, enquanto os odiados cristãos «alimentam os seus, e também os nossos»[166]. Numa carta, insiste, em particular, na ordem de criar instituições de caridade para competir com os cristãos e atrair o respeito da sociedade: «Estabelece em todas as cidades alojamentos numerosos para que os estrangeiros possam gozar da nossa humanidade. [...] Habitua os helenos às obras de beneficência»[167]. Mas não atingiu o seu objetivo, porque por detrás destas obras não havia seguramente o amor cristão, que permitia reconhecer a cada pessoa uma dignidade única.
170. Identificando-se com os últimos da sociedade (cf. Mt 25, 31-46), «Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, como também e sobretudo daquelas qualificadas como “indignas”. Este princípio novo na história, pelo qual o ser humano é tanto mais “digno” de respeito e de amor quanto mais é fraco, mísero e sofredor, a ponto de perder a própria “figura” humana, mudou o rosto do mundo, dando vida a instituições que se dedicam a cuidar daqueles que se encontram em condições desumanas: os recém-nascidos abandonados, os órfãos, os idosos deixados sozinhos, os doentes mentais, os portadores de doenças incuráveis ou com graves malformações, os sem-teto»[168].
171. Mesmo do ponto de vista da ferida do seu Coração, olhar para o Senhor, que «tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores» (Mt 8, 17), ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor[169]. Se contemplarmos a entrega de Cristo por todos, torna-se inevitável perguntarmo-nos por que razão não somos capazes de dar a nossa vida pelos outros: «Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1 Jo 3, 16).
ALGUMAS RESSONÂNCIAS NA HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE
172. Esta união entre a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos atravessa a história da espiritualidade cristã. Vejamos alguns exemplos.
173. A partir de Orígenes, vários Padres da Igreja interpretaram o texto de João 7, 38 – «hão de correr do seu coração rios de água viva» – como referindo-se ao próprio fiel, ainda que seja a consequência de ele próprio ter bebido de Cristo. Assim, a união com Cristo não tem apenas o objetivo de saciar a própria sede, mas de se tornar uma fonte de água fresca para os outros. Orígenes dizia que Cristo cumpre a sua promessa fazendo brotar em nós correntes de água: «A alma do ser humano, que é imagem de Deus, pode conter em si mesma e produzir de si mesma poços, fontes e rios»[170].
174. Santo Ambrósio recomendava beber de Cristo «para que abunde em ti a fonte de água que jorra para a vida eterna»[171]. E Mário Vitorino sustentava que o Espírito Santo é dado em tal abundância que «quem o recebe torna-se um ventre que emana rios de água viva»[172]. Santo Agostinho dizia que este rio que brota do fiel é a benevolência[173]. São Tomás de Aquino reafirmou esta ideia, afirmando que quando alguém «se apressa a comunicar aos outros os diversos dons da graça que recebeu de Deus, brota do seu ventre água viva»[174].
175. Com efeito, embora «o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do género humano»[175], a Igreja, que nasce do Coração de Cristo, prolonga e comunica em todos os tempos e lugares os efeitos dessa única paixão redentora, que conduz os homens à união direta com o Senhor.
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