sábado, 16 de dezembro de 2023

“Angra do Heroísmo não é Património Mundial devido ao sismo, mas sim devido à sua importância crucial nos descobrimentos portugueses”, diz Paulo Pereira


O documentário “Angra do Mundo, o processo de classificação” foi realizado pelos jornalistas Paulo Brasil Pereira e Eduarda Mendes e esclarece algumas imprecisões na opinião pública sobre o processo de inscrição de Angra do Heroísmo na lista de Património Mundial pela UNESCO.

Autor: Tatiana Ourique / Açoriano Oriental


“As pirâmides do Egito, o Vaticano… nós estamos nessa mesma prateleira”, diz Francisco Maduro-Dias em “Angra do Mundo, o processo de classificação”. Desde 7 de dezembro de 1983. Há 40 anos.

Álamo Meneses, Álvaro Monjardino, Assunção Melo, Cláudia Cardoso, Joel Neto, Jorge Forjaz, Jorge Paulus Bruno, José Guilherme Reis Leite, Francisco Maduro-Dias e Mikhaël De Thyse são os participantes neste documentário produzido pela Media 9 e com o patrocínio da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo.

“Eu sou da geração pós-sismo. Para mim e para a Eduarda Mendes, que colaborou comigo neste projeto, Angra do Heroísmo com o galardão da UNESCO sempre foi um dado adquirido, mas estava sempre associada a ideia de que tinha sido pelo sismo e reconstrução, que a cidade tinha merecido essa distinção. Uma ideia, de certa forma errada, que viemos a descobrir com realização deste documentário. Angra do Heroísmo não é Património Mundial devido ao sismo, mas sim devido à sua importância crucial nos descobrimentos portugueses e a forma como esta cresceu em função deste período épico da história global. Provavelmente sem Angra, com o seu porto e baía, os descobrimentos portugueses não teriam tido forma estrutural que tiveram. Se pudesse voltar atrás no tempo, provavelmente escolheria essa altura da história para viver e presenciar os feitos e a dinâmica angrense com toda a sua globalidade atlântica”, disse o realizador açoriano.

Sobre a escolha dos intervenientes no documentário, Paulo Pereira, realizador de 36 anos e natural da ilha Terceira adianta que “Era indiscutível a presença dos ´pais` da classificação, o grupo de elite que compôs todo o processo e que, praticamente sozinhos, colocaram Angra no mapa da UNESCO. Estavam à época em cargos políticos e eram a favor da preservação do património, uniram esta conservação à grandeza histórica da cidade para levar a bom porto a ideia da classificação da zona central de Angra do Heroísmo. Era por tudo isto, e muito mais, imperativo recolher os testemunhos de quem, efetivamente, classificou a cidade. E uma oportunidade que não podia ser posta de parte, são homens com um peso imensurável, cujo discurso deve ser registado hoje, para que não se perca. Há personalidades atuais que não podemos esperar que passem a memórias, para só depois pensarmos no que se devia ter recolhido, há depoimentos que podem e devem ser registados para bem do pensamento futuro”, acrescenta.

Mas nem só de relatos do passado vive este trabalho: “quisemos juntar elementos da massa crítica atual angrense, porque só assim se pode perspetivar o que ainda há por fazer.

Como dizem vários dos intervenientes deste projeto uma cidade património, não é uma cidade musealizada, é necessário criar um documento que também faça por refletir o que temos e para onde queremos ir”, diz o jornalista repórter.

A linguagem do documentário apresenta a dicotomia de imagens de arquivo com imagens recentes e com um toque de arte do urban sketcher Emanuel Félix. “O desenho da cidade de Angra mantém-se praticamente intacto desde a sua fundação até aos dias de hoje. O desenho das ruas e dos seus edifícios contam a própria história da cidade, portanto foi pegar na câmara, esperar pela luz certa e ir para a rua. Angra é uma cidade muito fotogénica e foi interessante sobrepor os mapas antigos da cidade com as imagens atuais e ver que as ruas e os edifícios permanecem nos mesmos locais quase 500 anos depois. Mas quis mostrar um olhar diferente da cidade. Além de recorrer aos arquivos históricos da RTP e de resgatar mapas e gravuras dos acervos do Museu de Angra e da Biblioteca Pública de Angra, pedi ao Emanuel Félix que através do seu distinto traço, fosse para a cidade desenhá-la como ela é atualmente e que imaginasse a cidade de outrora cheia de Naus e caravelas na sua baía e as trocas comerciais em que Angra foi palco. Foi da interligação destes elementos que se produziu um documentário com uma narrativa bastante atual e que conta a história da classificação da zona central da cidade de Angra do Heroísmo. Penso que é algo que faz sempre falta, contar e recontar a nossa história”, refere.

De todos os registos que, para Paulo Pereira, acrescentaram valor à narrativa, há um que dá especial ênfase: “não será de estranhar que o depoimento de Álvaro Monjardino tenha sido marcante. Um homem que marcou a vida e história não apenas da Terceira, mas de toda a região, que aos 93 anos de idade não se limitou a recordar memórias, mas deixou também questões para o futuro. É ter a oportunidade de viver aqueles tempos, pela sua história, pelas recordações que transmitiu e também pelas dificuldades que passou para levar avante todo este processo”.

Os trabalhos de pesquisa permitiram que os jornalistas conhecessem as hipóteses de reconstrução que estiveram em cima da mesa no pós-sismo. “Foi também fundamental a troca de ideias entre o que foi e o que poderia ter sido a cidade. Tivemos acesso a esquemas e desenhos de projetos que foram feitos para uma cidade completamente diferente, ideias que iam desde aproveitar as ruínas, até à opção de arrasar e construir de novo. Cruzámos opiniões sobre o pós-reconstrução, daqueles que acreditam que nos anos 90 se podia ter integrado a arquitetura do século XX, e dos que firmam a ideia de que a traça da cidade não se deve modificar. Foram 10 vozes diferentes que, entre si, contaram cada pedaço da história pelo seu próprio olhar, à luz do cargo que exerciam/exercem, ou até pela forma como querem ver esta cidade daqui para a frente”.

Com a elaboração do documentário o realizador confirmou a ideia de que, para a população, a única preocupação era a de reedificar uma cidade destruída. Por isso a “elite” que pensou e orientou os destinos da cidade tiveram um papel crucial no processo. “A prioridade era reconstruir casas, freguesias inteiras. Não nos podemos esquecer que 70% do edificado estava danificado devido ao sismo de 1980, a maioria da população não iria voltar os olhos para a preservação do património, ou para a forma como seguiria a reconstrução, se em causa estava a possibilidade de ter ou não um teto para viver. Penso que essa consciência se desenvolveu com os tempos, com o assentar da própria cidade. Hoje é inquestionável esta

distinção, mas nem sempre foi assim. Era vista como algo que tinha sido levado a cabo por um grupo de intelectuais e não dizia muito à maioria da população”.

Um trabalho de um grupo de pensadores que tiveram a lucidez de, no meio do caos, reconstruir uma cidade inteira respeitando a identidade e o papel que ela teve enquanto paragem da navegação atlântica.

O documentário foi apresentado a 6 de dezembro no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo e será exibido na RTP-Açores a 22 de dezembro, depois do Telejornal. 

(Jornal "Acoreano Oriental")

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