terça-feira, 27 de outubro de 2015

«UM DIA ISTO TINHA QUE ACONTECER"





Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa 
abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as 
agruras da vida. Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram
 ensinados a lidar com frustrações. 
A ironia de tudo isto é que os jovens
 que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. 
Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e 
na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens
como lhes tem sido exigido nos últimos anos.

 
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha 
geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se 
das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram 
dar aos seus filhos o melhor. Ansiosos por sublimar as suas próprias
 frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes
 os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá 
vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias,
entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel,
depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes 
faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas,
a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa 
lavada.


Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor;
 o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em
 substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, 
já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra 
(quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o 
aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, 
secou. 
Foi então que os pais ficaram à rasca. Os pais à rasca não vão a um 
concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de 
música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome 
fiado. Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem 
continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de 
aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
 São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da 
luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os
 filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem
 dos qualquer coisa phones ou pads, sempre de última geração. São estes pais
 mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um
"não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não 
suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm
 necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles 
são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode 
dar!

 
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos 
duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados. Eis
 agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas 
e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção
do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes
 alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a 
pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.

 Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio 
nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique
 que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e 
interpretação da realidade em que se insere. Eis uma geração habituada a 
comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo
 modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da
ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma
 geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho,
ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro
 abundam. 
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no 
mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como 
as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras. Eis uma geração tão 
habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório 
se lhe tornou indispensável. Eis uma geração consumista, insaciável e
 completamente desorientada. Eis uma geração preparadinha para ser 
arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar
demagogicamente sobre o desespero alheio. 
Há talento e cultura e 
capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração? 
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos! Os jovens
que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato 
colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são 
esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós). Chego 
a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem,
 atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são 
empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que
inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como 
se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes
 de abarbatar bons ordenados e a subir na vida. E nós, os mais velhos, 
estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, 
para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito
 e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas
 almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!

 
Novos e velhos, todos estamos à rasca. Apesar do tom desta minha prosa, o 
que eu tenho mesmo é pena destes jovens. Tudo o que atrás escrevi serve
 apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. 
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?



Mia Couto

(internet)


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