A Viagem Apostólica de Francisco levará pela primeira vez um papa à terra de Abraão, às origens da nossa fé. Na Planície de Ur, herança das três religiões monoteístas, será realizado o encontro inter-religioso: esperanças de paz e fraternidade expressas na "Fratelli tutti"
Antonella Palermo – Vatican News
A viagem do Papa à planície de Ur para o encontro inter-religioso é altamente sugestiva pelo esplendor do local, pela grande importância simbólica pelas referências aos primórdios da aliança de Deus com o homem. Será realizada entre a visita ao Grão Aiatolá Al Sistani em Najaf e a Santa Missa na Catedral Caldeia de São José em Bagdá no sábado 6 de março.
Ur dos Caldeus é o lugar ligado à figura de Abraão e, em virtude disso, com fortes conotações a respeito do diálogo entre as fés, se considerarmos que também judeus e muçulmanos o veem como um modelo de submissão incondicional à vontade de Deus (cf. Nostra Aetate, 3). O desejo, expresso em 29 de junho de 1999 por João Paulo II em sua "Carta sobre as peregrinações aos lugares ligados à história da salvação", de poder visitar Ur dos Caldeus no Ano Santo de 2000, não se realizou por causa da guerra. Vinte e um anos depois, Francisco visitará um lugar onde nenhum Pontífice foi antes.
Entrevistamos a biblista Irmã Grazia Papola professora de Sagrada Escritura no Instituto de Ciências Religiosas de Verona e perguntamos em que sentido o significado de Ur dos Caldeus é mais ‘teológico’ do que ‘histórico’.
Irmã Grazia Papola pondera que na realidade não temos a possibilidade de reconstruir do ponto de vista do que entendemos como "história" as vicissitudes dos patriarcas. "Idealmente, na ficção narrativa, para uma cronologia que podemos encontrar no texto bíblico, deveríamos colocar os acontecimentos dos patriarcas por volta de 1800 a.C.". "É evidente que seria impossível pretender reconhecer e reconstruir os eventos daquela época também porque não temos testemunhos arqueológicos que possamos atribuir aos personagens dos quais a história bíblica nos fala e também sabemos que os caldeus parecem ter aparecido no evento histórico por volta de 900 a.C., portanto muitos séculos depois".
O significado teológico do lugar
O texto bíblico é preciso quando diz que é o pai de Abraão, Terah, que parte de Ur a caminho de Canaã, depois para em Harã e volta novamente para Canaã. “O narrador não estava interessado em nos informar sobre a viagem de Abraão, em fazer uma crônica dela, em nos dar exatamente todo o seu itinerário", explica a freira, "mas em inserir a história de Abraão em uma estrutura que hoje diríamos ser uma estrutura da história da salvação. A história, em essência, torna-se significativa para a vida dos destinatários da narração. E este é um ponto-chave para qualquer leitura bíblica. Portanto, não é uma narração histórica, com documentação, mas dizemos que é uma história verdadeira e teológica porque entendemos que a referência aos Caldeus se torna importante em uma determinada época da história de Israel".
O nome caldeus geralmente é encontrado como um termo para os babilônios, as pessoas que foram protagonistas da queda do reino de Judá e particularmente da queda de Jerusalém. "Quando Abraão é apresentado como proveniente de Ur dos Caldeus, então, não é tanto um interesse em saber se nosso ancestral deixou aquele lugar em termos exatos e prováveis", afirma a professora. "O importante é a possibilidade de reconstruir a figura do antepassado - o pai do povo, aquele que recebeu a bênção original e que chega também até mim - como um homem que partiu do lugar que idealmente é o ponto de partida dos exilados que voltaram de Babilônia para Jerusalém.
Abraão, paradigma do exilado
Diante disso, Abraão se torna uma figura modelo para os exilados. "É como se eu estivesse colocando na origem da minha história o itinerário de um homem que foi decisivo para minha vida, em relação ao qual posso me reconhecer e compreender o sentido de minha relação de fé com o Senhor", explica a religiosa.
Depois de partir de Ur dos Caldeus, parou em Harã, e continuou para Canaã, assim também nós do exílio podemos enfrentar este caminho em resposta a um chamado de fé e aceitando o dom da terra que nos foi destinada neste pai. Se omitíssemos as referências iniciais da história de Abraão, poderíamos pensar que estamos ligados com um dos muitos povos nômades que viveram na terra de Canaã. É este início da história - que o apresenta como vindo de outra terra - que é o elemento decisivo. "Abraão representa o ideal de quem opta por deixar a Babilônia - na qual também houve oportunidades do ponto de vista econômico e na qual as cidades eram extraordinariamente belas - e com coragem se dirige para a terra que o Senhor indicará para habitá-la de uma forma absolutamente singular".
O percurso de Abraão
Abraão, o migrante
Olhando o texto hebraico, Abraão é um gher, um "estrangeiro", que se identifica com o migrante de hoje. Esta condição - assinala a estudiosa biblista - é vivida em virtude de um apelo não simples: deixar o vínculo com seu pai e sua casa o expõe a um espaço vazio, que no seu caso será preenchido pela presença do Senhor e pelo cumprimento da promessa. Para Abraão, deixar sua própria terra significava a perda de direitos, de proteção legal, do apoio de seu parentesco, de garantias de segurança, estabilidade e certeza de subsistência. "Abraão não só assume este status mas o manterá, porque na terra de Canaã ele será sempre um estrangeiro", sublinha a professora. O valor precioso e simbólico que Abraão carrega consigo é a capacidade de estabelecer laços positivos com os que habitam a terra sem exercer qualquer tipo de opressão, mas mantendo sempre uma dignidade muito alta.
O valor "ecológico" do habitar: sentir-se hóspedes
"Viver na terra sem tomar posse dela, sem usá-la para seu próprio interesse, mas sempre mantendo-a como uma promessa, como um presente", é isto que Abraão nos ensina com sua história. No final de sua vida ele comprará um terreno, negociando-o com os habitantes locais, e será o local da sepultura de Sara e depois da sua: como se dissesse - explica Irmã Grazia - que se possui a terra somente depois da morte. Por trás do respeito pela terra há um importante princípio ecológico: Abraão é vulnerável e exposto à violência dos outros, mas não toma posse da terra. Ele vive esta dimensão a tal profundidade que encarna ambos os papéis: daquele que se permite ser hospedado e daquele que hospeda. Aqui a Irmã Graça cita a bela história do capítulo 18, na qual Abraão hospeda três figuras misteriosas que - ela diz - poderíamos ler como estrangeiros que vieram de outros lugares e que Abraão acolhe com uma extraordinária generosidade, com uma incrível excelência, recebendo a promessa de um futuro.
Chagall, Abraão e os três anjos
A auto-apresentação de Deus
Na terceira ocorrência de Ur dos Caldeus no livro do Gênesis, a formulação é encontrada em uma expressão na qual o Senhor se apresenta a Abraão (no capítulo 15).
“Eu sou o Senhor teu Deus
que te fez sair de Ur dos Caldeus
e eu te dou a posse desta terra”
Para o leitor bíblico aqui é evocada outra história, a do êxodo, do Egito, da casa da escravidão. Em resumo, "Abraão é também a antecipação de um novo êxodo e Deus aquele que liberta, que dá à luz um nascimento, uma nova vida, uma vida plena marcada pela liberdade".
(vaticannews)
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