sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

CARTA DO PADRE MARTIN LASARTE




A carta que se segue foi escrita pelo padre salesiano uruguaio Martín Lasarte, que trabalha em Angola, e endereçada a 6 de Abril ao jornal norte-americano The New York Times. Nela expressa a sua perplexidade diante da onda mediática despertada pelos abusos sexuais de alguns sacerdotes a par do desinteresse que o trabalho de milhares religiosos suscita nos meios de comunicação.



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Querido irmão e irmã jornalista:

Sou um simples sacerdote católico. Sinto-me orgulhoso e feliz com a
minha vocação. Há vinte anos vivo em Angola como missionário. Sinto
grande dor pelo profundo mal que pessoas, que deveriam ser sinais do
amor de Deus, sejam um punhal na vida de inocentes. Não há palavras
que justifiquem estes atos. Não há dúvida de que a Igreja só pode
estar do lado dos mais frágeis, dos mais indefesos. Portanto, todas as
medidas que sejam tomadas para a proteção e prevenção da dignidade das
crianças será sempre uma prioridade absoluta.
Vejo em muitos meios de informação, sobretudo em vosso jornal, a
ampliação do tema de forma excitante, investigando detalhadamente a
vida de algum sacerdote pedófilo. Assim aparece um de uma cidade dos
Estados Unidos, da década de 70, outro na Austrália dos anos 80 e
assim por diante, outros casos mais recentes...
Certamente, tudo condenável! Algumas matérias jornalísticas são
ponderadas e equilibradas, outras exageradas, cheias de preconceitos e
até ódio.
É curiosa a pouca notícia e desinteresse por milhares de sacerdotes
que consomem a sua vida no serviço de milhões de crianças, de
adolescentes e dos mais desfavorecidos pelos quatro cantos do mundo
Penso que ao vosso meio de informação não interessa que eu precisei
transportar, por caminhos minados, em 2002, muitas crianças
desnutridas de Cangumbe a Lwena (Angola), pois nem o governo se
dispunha a isso e as ONGs não estavam autorizadas; que tive que
enterrar dezenas de pequenos mortos entre os deslocados de guerra e os
que retornaram; que tenhamos salvo a vida de milhares de pessoas no
Moxico com apenas um único posto médico em 90.000 km2, assim como com
a distribuição de alimentos e sementes; que tenhamos dado a
oportunidade de educação nestes 10 anos e escolas para mais de 110.000
crianças...
Não é do interesse que, com outros sacerdotes, tivemos que socorrer a
crise humanitária de cerca de 15.000 pessoas nos aquartelamentos da
guerrilha, depois de sua rendição, porque os alimentos do Governo e da
ONU não estavam chegando ao seu destino.
Não é notícia que um sacerdote de 75 anos, o padre Roberto, percorra,
à noite, a cidade de Luanda curando os meninos de rua, levando-os a
uma casa de acolhida, para que se desintoxiquem da gasolina, que
alfabetize centenas de presos; que outros sacerdotes, como o padre
Stefano, tenham casas de passagem para os menores que sofrem maus
tratos e até violências e que procuram um refúgio.
Tampouco que Frei Maiato com seus 80 anos, passe casa por casa
confortando os doentes e desesperados.
Não é notícia que mais de 60.000 dos 400.000 sacerdotes e religiosos
tenham deixado sua terra natal e sua família para servir os seus
irmãos em um leprosário, em hospitais, campos de refugiados, orfanatos
para crianças acusadas de feiticeiros ou órfãos de pais que morreram
de Aids, em escolas para os mais pobres, em centros de formação
profissional, em centros de atenção a soropositivos... ou, sobretudo,
em paróquias e missões dando motivações às pessoas para viver e amar.
Não é notícia que meu amigo, o padre Marcos Aurelio, por salvar jovens
durante a guerra de Angola, os tenha transportado de Kalulo a Dondo, e
ao voltar à sua missão tenha sido metralhado no caminho; que o irmão
Francisco, com cinco senhoras catequistas, tenham morrido em um
acidente na estrada quando iam prestar ajuda nas áreas rurais mais
recônditas; que dezenas de missionários em Angola tenham morrido de
uma simples malária por falta de atendimento médico; que outros tenham
saltado pelos ares por causa de uma mina, ao visitarem o seu pessoal.
No cemitério de Kalulo estão os túmulos dos primeiros sacerdotes que
chegaram à região... Nenhum passa dos 40 anos.
Não é notícia acompanhar a vida de um Sacerdote “normal” em seu dia a
dia, em suas dificuldades e alegrias consumindo sem barulho a sua vida
a favor da comunidade que serve. A verdade é que não procuramos ser
notícia, mas simplesmente levar a Boa-Notícia, essa notícia que sem
estardalhaço começou na noite da Páscoa. Uma árvore que cai faz mais
barulho do que uma floresta que cresce.
Não pretendo fazer uma apologia da Igreja e dos sacerdotes. O
sacerdote não é nem um herói nem um neurótico. É um homem simples, que
com sua humanidade busca seguir Jesus e servir os seus irmãos. Há
misérias, pobrezas e fragilidades como em cada ser humano; e também
beleza e bondade como em cada criatura...
Insistir de forma obsessiva e perseguidora em um tema perdendo a visão
de conjunto cria verdadeiramente caricaturas ofensivas do sacerdócio
católico na qual me sinto ofendido.
Só lhe peço, amigo jornalista, que busque a Verdade, o Bem e a Beleza.
Isso o fará nobre em sua profissão.
Em Cristo,


Pe. Martín Lasarte, SDB.


(Enviado pelo H. Brasil)

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