Homilia do Papa
Nesta Quinta-feira Santa, Francisco refletiu com os fiéis sobre
três graças que caracterizam o relacionamento entre Jesus e as multidões: a
graça do seguimento, a graça da admiração e a graça do discernimento.
Cidade do Vaticano
Nesta Quinta-feira Santa
(18/04), o Papa Francisco presidiu a Missa do Crisma, na Basílica de São Pedro.
Segue, abaixo, a íntegra da homilia do Pontífice.
O Evangelho de Lucas, que
acabamos de ouvir, faz-nos reviver a emoção do momento em que o Senhor Se
assume a profecia de Isaías, lendo-a solenemente no meio do seu povo. A
sinagoga de Nazaré estava cheia de parentes, vizinhos, conhecidos, amigos... e
outros não muito amigos. E todos tinham os olhos fixos n’Ele. A Igreja tem
sempre os olhos fixos em Jesus, o Ungido que o Espírito envia para ungir o povo
de Deus.
Com frequência, os
Evangelhos apresentam-nos esta imagem do Senhor no meio das multidões, cercado
e comprimido pelas pessoas que Lhe trazem os doentes, pedem-Lhe que expulse os
espíritos malignos, escutam os seus ensinamentos e caminham com Ele. «As minhas
ovelhas escutam a minha voz: Eu conheço-as e elas seguem-Me» (Jo 10,
27).
O Senhor nunca perdeu
este contacto direto com o povo, sempre manteve a graça da proximidade, com o
povo no seu conjunto e com cada pessoa no meio daquelas multidões. Vemo-lo na
sua vida pública, mas o mesmo aconteceu desde o princípio: o esplendor do
Menino atraiu docilmente pastores, reis e idosos sonhadores como Simeão e Ana.
E foi assim também na Cruz: o seu Coração atrai todos a si (cf. Jo 12,
32): verónicas, cireneus, ladrões, centuriões...
Aqui, o termo «multidões»
não é depreciativo. Aos ouvidos de alguém, poderia talvez soar como uma massa
anónima, indiferenciada; mas no Evangelho, quando as multidões interagem com o
Senhor, que Se coloca no meio delas como um pastor no rebanho, vemos que
aquelas se transformam: no espírito do povo, desperta o desejo de seguir Jesus,
brota a admiração, toma forma o discernimento.
Gostaria de refletir
convosco sobre estas três graças que caraterizam o relacionamento entre Jesus e
as multidões.
A graça do seguimento
Lucas diz que as
multidões «procuravam-No» (Lc 4, 42) e «seguiam com Ele» (Lc 14,
25), «apertavam-No» e «empurravam-No» (cf. Lc 8, 42-45)
«juntando-se grande multidões para O ouvirem» (Lc 5, 15). Este
seguimento do povo não é calculista, é um seguimento sem condições, cheio de
carinho. Contrasta com a mesquinhez dos discípulos, cujo comportamento face ao
povo se revela quase cruel quando sugerem ao Senhor que o mande embora para
irem procurar algo de comer. Creio que o clericalismo começou aqui: nesta
atitude de querer assegurar-se o próprio alimento e comodidade,
desinteressando-se das pessoas. O Senhor cortou pela raiz esta tentação.
«Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6,37), foi a resposta de Jesus:
«Ocupai-vos do povo!».
A graça da admiração
A segunda graça, que a
multidão recebe ao seguir Jesus, é a duma admiração cheia de alegria. O povo
fica admirado com Jesus (cf. Lc 11, 14), com os seus milagres,
mas sobretudo com a sua própria Pessoa. O povo gostava muito de saudá-Lo ao
longo da estrada, ser abençoado por Ele e bendizê-Lo, como aquela mulher que do
meio da multidão bendisse a sua Mãe. E o Senhor, por sua vez, ficava admirado
com a fé do povo, regozijava-Se e não perdia ocasião de o fazer notar.
A graça do discernimento
A terceira graça, que
recebe o povo, é a do discernimento. «As multidões, que souberam [para onde
fora Jesus], seguiram-No» (Lc 9, 11). «A multidão ficou vivamente
impressionada com os seus ensinamentos, porque Ele ensinava-os como quem possui
autoridade» (Mt 7, 28-29; cf. Lc5, 26). Cristo, a
Palavra de Deus feita carne, suscita nas pessoas este carisma do discernimento;
certamente, não um discernimento de especialistas em assuntos controversos.
Quando os fariseus e os doutores da lei discutiam com Ele, aquilo que o povo
reconhecia era a Autoridade de Jesus: a força da sua doutrina, capaz de
penetrar nos corações, e o facto de os espíritos malignos Lhe obedecerem; e
ainda deixar sem palavra aqueles que urdiam diálogos insidiosos. O povo
alegrava-se com isso.
Aprofundemos um pouco
esta visão evangélica da multidão. Lucas indica quatro grandes grupos que são
destinatários preferenciais da unção do Senhor: os pobres, os prisioneiros de
guerra, os cegos, os oprimidos. Nomeia-os em geral, mas depois, no decorrer da
vida do Senhor, vemos com alegria que estes ungidos adquirem rosto e nome
próprios. Assim como a unção com o azeite se aplica num ponto e a sua ação
benéfica se expande por todo o corpo, também o Senhor, assumindo a profecia de
Isaías, nomeia várias «multidões» às quais O envia o Espírito, obedecendo a uma
dinâmica que poderíamos chamar de «preferência inclusiva»: a graça e o carisma
que se dá a uma pessoa ou a um grupo em particular redunda, como toda a ação do
Espírito, em benefício de todos.
Os pobres (ptochoi)
são aqueles que estão curvados, como os mendigos que se inclinam para pedir.
Mas é pobre (ptochè) também a viúva, que unge com os seus dedos as duas
moedinhas que constituíam tudo o que tinha naquele dia para viver. A
unção daquela viúva para dar a esmola passa despercebida aos olhos de
todos, exceto aos de Jesus, que vê com bondade a sua pequenez. Com ela, o
Senhor pode cumprir plenamente a sua missão de anunciar o Evangelho aos pobres.
Paradoxalmente, são os discípulos que ouvem a boa nova de que existem tais
pessoas. Ela, a mulher generosa, nem se deu conta de «ter aparecido no
Evangelho» (ou seja, que o seu gesto haveria de ser mencionado no Evangelho): o
feliz anúncio de que as suas ações «têm peso» no Reino e contam mais do que
todas as riquezas do mundo, ela vive-o dentro de si, como tantos santos e
santas de «ao pé da porta».
Os cegos são representados por um dos rostos mais simpáticos do
Evangelho: Bartimeu (cf. Mc10, 46-52), o mendigo cego que recuperou
a vista e, a partir daquele momento, só teve olhos para seguir Jesus pela
estrada. A unção do olhar! O nosso olhar, ao qual os olhos de Jesus
podem devolver aquele brilho que só o amor gratuito pode dar, aquele brilho que
nos é roubado diariamente pelas imagens interessadas ou banais com que nos
submerge o mundo.
Para designar os
oprimidos (tethrausmenous), Lucas usa um termo que contém a
palavra «trauma». Isto é suficiente para evocar a parábola (talvez a preferida
de Lucas) do Bom Samaritano, que unge com azeite e enfaixa as feridas (traumata: Lc 10,
34) do homem que fora espancado deixando-o meio morto na beira da
estrada. A unção da carne ferida de Cristo! Naquela unção, está o
remédio para todos os traumas que deixam pessoas, famílias e populações
inteiras fora de jogo, como excluídas e supérfluas, à margem da história.
Os prisioneiros são
os cativos de guerra (aichmalotos), aqueles que eram conduzidos a ponta
de lança (aichmé). Jesus usará o termo para Se referir à prisão e
deportação de Jerusalém, sua amada cidade (Lc 21, 24). Hoje as
cidades são feitas prisioneiras não tanto a ponta de lança, como sobretudo com
os meios mais subtis de colonização ideológica. Só a unção da nossa
cultura própria, forjada pelo trabalho e a arte dos nossos antepassados, é
que pode libertar as nossas cidades destas novas escravidões.
Concretizando para nós,
queridos irmãos sacerdotes, não devemos esquecer que os nossos modelos
evangélicos são este «povo», esta multidão com estes rostos concretos, que a
unção do Senhor levanta e vivifica. São aqueles que completam e tornam real a
unção do Espírito em nós, que fomos ungidos para ungir. Fomos tomados dentre
eles e podemos, sem medo, identificar-nos com esta gente simples. Eles são
imagem da nossa alma e imagem da Igreja. Cada um encarna o coração único do
nosso povo.
Nós, sacerdotes, somos o
pobre e queremos ter o coração da viúva pobre quando damos esmola e tocamos a
mão do mendigo fixando-o nos olhos. Nós, sacerdotes, somos Bartimeu, e
levantamo-nos cada manhã para rezar: «Senhor, que eu veja!» (cf. Mc 10,
51). Nós, sacerdotes, somos, nos vários momentos do nosso pecado, o ferido
espancado deixado meio morto pelos ladrões. E queremos ser os primeiros a estar
entre as mãos compassivas do Bom Samaritano, para depois podermos com as mãos
ter compaixão dos outros.
Confesso-vos que, quando
crismo e ordeno, gosto de espalhar bem o Crisma na testa e nas mãos de quantos
são ungidos. Ungindo bem, experimenta-se que ali se renova a nossa própria
unção. Uma coisa quero dizer: Não somos distribuidores de azeite em garrafa.
Ungimos, distribuindo-nos a nós mesmos, distribuindo a nossa vocação e o nosso
coração. Enquanto ungimos, somos de novo ungidos pela fé e pela afeição do
nosso povo. Ungimos, sujando as nossas mãos ao tocar as feridas, os pecados, as
amarguras do povo; ungimos perfumando as nossas mãos ao tocar a sua fé, as suas
esperanças, a sua fidelidade e a generosidade sem reservas da sua doação.
Aquele que aprende a
ungir e a abençoar fica curado da mesquinhez, do abuso e da crueldade.
Rezemos para que o Pai,
ao colocar-nos com Jesus no meio do nosso povo, renove em nós a efusão
do seu Espírito de santidade e faça com que nos unamos para
implorar a sua misericórdia para o povo que nos está confiado e pelo mundo
inteiro. Assim, as multidões dos povos, reunidos em Cristo, podem tornar-se
o único Povo fiel de Deus, que terá a sua plenitude no Reino (cf. Oração
Consecratória dos Presbíteros).
(vaticannews)
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