Paris, na aurora do século XX,
fervilha de ideias, que circulam a grande velocidade entre artistas,
escritores, intelectuais. A cidade é a capital incontestada do mundo das artes,
estatuto que só perderá para Nova Iorque com o advento da Grande Guerra.
Artistas e aspirantes a artistas de todas as partes da Europa são atraídos por
este poderoso íman. Em 1906, segundo os compêndios de história da arte, chegam
à cidade o espanhol Juan Gris e os italianos Amedeo Modigliani e Umberto
Boccioni. Mas muito em breve a história desse ano poderá ter de ser reescrita
para incluir o nome de um português: Amadeo de Souza-Cardoso.
“A ausência de reconhecimento
internacional deve-se ao facto de durante longas décadas ter estado
desaparecido”, explica a historiadora da arte Helena de Freitas, comissária da
exposição simplesmente intitulada ‘Amadeo de Souza-Cardoso. 1887-1918’, que tem
organização conjunta da Fundação Calouste Gulbenkian com a Réunion des musées
nationaux e inaugura amanhã, dia 20 de abril, no Grand Palais, em Paris. A
mostra, que se insere nas celebrações do 50.º aniversário da delegação da
Gulbenkian em Paris, inclui 205 obras do artista português, mas também
documentos como cartas e fotografias - e ainda dez obras dos seus amigos
Brancusi, Modigliani e o casal Delaunay. Com ela pretende-se combater o
esquecimento a que Amadeo e a sua obra foram votados após a morte prematura do
criador aos 30 anos e, explica a comissária, “replicar a visibilidade que teve
em Paris, onde era um artista importante”.
Filho de grandes proprietários de
Manhufe (Amarante), Souza-Cardoso estudou desenho na Academia de Belas-Artes de
Lisboa e tinha 19 anos quando partiu para a capital francesa. “Foi para Paris
estudar Arquitetura, mas penso que mal lá chegou foi desperto por aquela cidade
em profunda transformação”, refere Helena de Freitas. “Era muito curioso,
frequentava museus, visitava o Louvre assiduamente, sobretudo para ver os
primitivos, que eram os seus ídolos. A partir daí percebeu que era ali que
queria viver e evoluir como artista. Tentou desenvolver uma atividade como
caricaturista e teve algum trabalho para convencer os pais de que seria esse o
seu destino. Foi difícil, mas acabaram por aceitar”.
Um
português na vanguarda
Em Paris, o pintor português
procurou de início a companhia dos seus conterrâneos, mas cedo percebeu que
estes “marchavam numa rotina atrasada” (as palavras são suas). E começa então a
movimentar-se no meio internacional e cosmopolita das vanguardas. “Na
biblioteca Kandinsky, em Paris, há correspondência trocada entre Amadeo e
Brancusi”, continua Helena de Freitas. “Outra prova de uma cumplicidade
artística e pessoal fortíssima é a abertura das portas do ateliê de Amadeo a
uma exposição conjunta com Modigliani, em 1911. Essa exposição foi visitada
pelo Picasso, pelo Apollinaire e outros, e acompanhada pelo Brancusi. E não só
isso. Há uma fotografia que demonstra que Amadeo possuía uma obra de
Modigliani, que vai estar nesta exposição. E a filha de Modigliani, Jeanne
Modigliani, refere que Amadeo foi o grande amigo e grande companheiro de
trabalho do seu pai”.
Na sua carreira intensa e
fulgurante, Amadeo experimentou várias linguagens plásticas. “A nós, à nova
geração, só a originalidade interessa. Impressionista, cubista, futurista,
abstracionista? De tudo um pouco”, escreveu o artista. “Há um trabalho muito
experimental e muito original por um artista que tem uma grande pluralidade e é
ainda jovem, está a experimentar, e fá-lo com uma energia e um grande fulgor e
uma linguagem muito própria”, diz Helena de Freitas. “Acho que a grande
originalidade dele foi conseguir transformar estes lugares que são os seus
lugares de origem em espaços de experimentação plástica altamente cosmopolita”.
Por toda essa atmosfera de criação
e partilha, “foi muito dramático para o artista ter saído de Paris”, considera
Helena de Freitas. “Ele não fugiu da guerra, ele foi surpreendido pela notícia
da guerra quando saiu para casar com Lucie Pecetto, e portanto já não conseguiu
voltar para Paris. Na sua correspondência com Walter Pach, um crítico
norte-americano, estava permanentemente a dizer que queria regressar a Paris.
Porque ele sabia que só em Paris podia ser reconhecido pelos seus pares. E isso
era uma questão fundamental para ele. Ele sabia que estava a produzir um
trabalho fulgurante e precisava de o mostrar”.
Uma
luz “muito cedo desaparecida”
A exposição que ambicionava ter em
Nova Iorque acabou por nunca se concretizar, assim como o regresso a Paris. No
retiro de Manhufe, Amadeo continuou a produzir uma obra singular, mas de certo
modo sufocado por não a poder revelar ao mundo. A comissária considera, aliás,
este “o período mais fulgurante do seu trabalho, que ele desenvolve de uma
forma extraordinária, não digo em solidão, mas bastante sozinho”.
Em 1918, ao mesmo tempo que
continua a fazer planos para voltar a Paris, onde vivera os melhores anos da
sua vida, Amadeo refugia-se na casa da sua família em Espinho para escapar à
gripe espanhola. Sem sucesso: a 25 de outubro desse ano acaba por falecer, aos 30
anos, vítima de uma das mais mortais epidemias da História (20 milhões de
mortos na Europa). Para o pintor e escultor alemão Otto Freundlich, Amadeo “foi
uma luz daquele tempo muito cedo desaparecida”.
Daí em diante, diz Helena de
Freitas, “a obra dele foi silenciada”. Pela falta de estratégia de promoção do
país, mas também pelo apego da viúva às suas obras. Guardava-as em casa, até
debaixo da cama. A casa dela estava coberta de pinturas do marido”. Resultado:
“Acabou por manter as obras com pouca visibilidade, exatamente na altura em que
a história da arte internacional estava a ser escrita”. Amadeo precisa, por
isso, defende a comissária, “de ser exposto”.
E desta vez não vai ser exposto num lugar qualquer, mas
no Grand Palais, onde só têm direito a entrar os grandes nomes das artes. “O
Grand Palais expôs imediatamente antes do Amadeo o Picasso e, antes do Picasso,
o Velázquez”, nota Helena de Freitas. O português “fica portanto muito bem
acompanhado”.
(sol.pt/noticia)
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