VIAGEM
DO PAPA FRANCISCO À ÁFRICA
QUÊNIA, UGANDA e REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA
DISCURSO
Visita ao bairro pobre de Kangemi –
Nairóbi (Quênia)
Sexta-feira, 27 de Novembro de 2015
Boletim da Santa Sé
Obrigado por me terdes acolhido no vosso
bairro. Obrigado ao Senhor Arcebispo Kivuva e ao Padre Pascal pelas suas
palavras. Na realidade, sinto-me em casa partilhando este momento com irmãos e
irmãs que ocupam – não tenho vergonha de o dizer – um lugar especial na minha
vida e nas minhas opções. Estou aqui, porque quero que saibais que as vossas
alegrias e esperanças, as vossas angústias e sofrimentos não me são
indiferentes. Conheço as dificuldades que enfrentais dia a dia! Como não
denunciar as injustiças que sofreis?
Antes de mais nada, queria deter-me num
aspecto que os discursos de exclusão não conseguem reconhecer ou parecem
ignorar. Refiro-me à sabedoria dos bairros populares. Uma sabedoria que brota
da «obstinada resistência daquilo que é autêntico» (Laudato si’, 112), de
valores evangélicos que a sociedade opulenta, entorpecida pelo consumo
desenfreado, parecia ter esquecido. Vós sois capazes de «tecer laços de
pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência
comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo»
(ibid., 149).
A cultura dos bairros populares, permeada
por esta sabedoria particular, «tem características muito positivas, que são
uma contribuição para o tempo em que vivemos, exprime-se em valores como a
solidariedade, dar a vida pelo outro, preferir o nascimento à morte, dar sepultura
cristã aos seus mortos; oferecer um lugar para os doentes na própria casa,
partilhar o pão com o faminto: “onde comem 10, comem 12”; a paciência e a
fortaleza nas grandes adversidades, etc» (Equipa de Sacerdotes para as «Villas
de Emergência» (Argentina), Reflexiones sobre la urbanización y la cultura
villera, 2010). Valores baseados nisto: cada ser humano é mais importante do
que o deus dinheiro. Obrigado por nos lembrardes que há outro tipo de cultura
possível.
Queria começar por reivindicar estes
valores que vós praticais, valores que não aparecem cotados na Bolsa, valores
que não são objecto de especulação nem têm preço de mercado. Congratulo-me
convosco, acompanho-vos e quero que saibais que o Senhor nunca Se esquece de
vós. O caminho de Jesus começou na periferia, vai dos pobres e com os pobres
para todos.
Reconhecer estas manifestações de vida boa
que crescem diariamente entre vós não significa, de forma alguma, ignorar a
terrível injustiça da marginalização urbana. São as feridas provocadas pelas
minorias que concentram o poder, a riqueza e esbanjam egoisticamente enquanto a
crescente maioria deve refugiar-se em periferias abandonadas, contaminadas,
descartadas.
Isto agrava-se quando se vê a injusta
distribuição do terreno (talvez não neste bairro, mas noutros) que, em muitos
casos, leva famílias inteiras a pagarem aluguéis abusivos por habitações em
condições imobiliárias completamente inadequadas. Sei também do grave problema
da sonegação de terras por «empresários privados» sem rosto, que pretendem
apropriar-se até do pátio da escola dos próprios filhos. Sucede isto porque se
esquece que «Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente
todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém» (João Paulo II,
Centesimus annus, 31).
Nesta linha, um grave problema é a falta
de acesso às infra-estruturas e serviços básicos. Refiro-me a balneários,
fossas, esgotos, recolha de lixo, energia eléctrica, estradas, mas também
escolas, hospitais, centros recreativos e desportivos, ateliês artísticos. Mas
de modo particular refiro-me à água potável. «O acesso à água potável e segura
é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a
sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros
direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que
não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida
radicado na sua dignidade inalienável» (Laudato si’, 30). Negar a água a uma
família, sob qualquer pretexto burocrático, é uma grande injustiça, sobretudo
quando se lucra com essa necessidade.
Este contexto de indiferença e
hostilidade, de que sofrem os bairros populares, agrava-se quando a violência
se espalha e as organizações criminosas, ao serviço de interesses económicos ou
políticos, utilizam crianças e jovens como «carne de canhão» para os seus
negócios ensanguentados. Conheço também os sofrimentos das mulheres que lutam
heroicamente para proteger os seus filhos e filhas destes perigos. Peço a Deus
que as autoridades assumam juntamente convosco o caminho da inclusão social, da
educação, do desporto, da acção comunitária e da tutela das famílias, porque
esta é a única garantia duma paz justa, verdadeira e duradoura.
Estas realidades, que enumerei, não são
uma combinação casual de problemas isolados. São, antes, uma consequência de
novas formas de colonialismo que pretendem que os países africanos sejam «peças
de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca» (João Paulo II, Ecclesia
in Africa, 52). Na realidade, não faltam pressões para que se adoptem políticas
de descarte, como a da redução da natalidade que pretende «legitimar o modelo
distributivo actual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir
numa proporção que seria impossível generalizar» (Laudato si’, 50).
Neste sentido, proponho que se retome a
ideia duma respeitosa integração urbana. Nem erradicação nem paternalismo, nem
indiferença nem mero confinamento. Precisamos de cidades integradas e para
todos. Precisamos de ir além da mera proclamação de direitos que, na prática,
não são respeitados, e promover acções sistemáticas que melhorem o habitat
popular e projectar novas urbanizações de qualidade para acolher as futuras
gerações. A dívida social, a dívida ambiental para com os pobres das cidades
paga-se tornando efectivo o direito sagrado aos «três T»: terra, tecto e
trabalho. Não é filantropia, é um dever de todos.
Quero apelar a todos os cristãos,
especialmente aos Pastores, para que renovem o impulso missionário, tomem
iniciativa contra tantas injustiças, envolvam-se nos problemas dos vizinhos,
acompanhem-nos nas suas lutas, salvaguardem os frutos do seu trabalho
comunitário e celebrem juntos cada vitória pequena ou grande. Sei que já fazeis
muito, mas peço-vos para recordardes que não é uma tarefa mais, mas é talvez a
mais importante, porque «os pobres são os destinatários privilegiados do
Evangelho» (Bento XVI, Encontro com o Episcopado Brasileiro, Catedral de São
Paulo/Brasil, 11 de Maio de 2007, 3).
Queridos vizinhos, queridos irmãos!
Rezemos, trabalhemos, comprometamo-nos juntos para que cada família tenha um
tecto digno, tenha acesso a água potável, tenha um banheiro, tenha energia
segura para iluminar, cozinhar e melhorar as suas casas… para que todo o bairro
tenha estradas, praças, escolas, hospitais, espaços desportivos, recreativos e
artísticos; para que os serviços básicos cheguem a cada um de vós; para que
sejam ouvidas as vossas reclamações e o vosso grito por melhores oportunidades;
para que todos possais gozar da paz e segurança que mereceis de acordo com a
vossa dignidade humana infinita.
Mungu awabariki [Deus vos abençoe].
E peço, por favor, que não vos esqueçais
de rezar por mim.
(papa.cancaonova)
SEXTA-FEIRA, 27 DE
NOVEMBRO DE 2015, 7H22
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