segunda-feira, 2 de maio de 2011

O meu Pico trago-o comigo

A ilha de onde parti não é a ilha aonde regresso.

Foi soterrada com os olhos do meu avô António...





Abandonei a ilha
e hoje a ilha sou eu
Li algures que «nós somos o lugar que nos faz falta» e sorri em sinal de concordância.

Tinha 18 anos e o meu olhar de menina abandonava a ilha rumo ao futuro. Nunca esqueci aquela travessia do canal: as mãos grandes e incultas do meu pai nas minhas e os meus olhos pequenos e turvos, cheios de mar, postos na proa.

Naquele dia trouxe comigo o Castelete, a Poça do Pano, o Caneiro, o Lajido, os Mistérios e os Cabeços e aquele Pico gigante que eu ousei desafiar.

Naquele dia, juntamente com a linguiça, os inhames e o queijo fresco — feito com o leite da Estrela pelas mãos bondosas da minha mãe —, trouxe o grito das cagarras e o perfume doce da roca-de-velha, o «Haja Saúde, minha jóia!» do Faria, a Folia do Espírito Santo, o cheiro do cachimbo do Sr. Ferreira já coalhado nos livros da biblioteca, a Chamarrita, os foguetes de S. Pedro, o rufar da caixa do José Faniquito e a paciência do Mestre Viveza, que me ensinou o dó ré mi.

Digo que não poderia ter nascido noutra nesga de terra. No entanto, os meus olhos de menina mudaram e o meu Pico também. A Judite Jorge, minha conterrânea, escreveu que «ninguém é tão estrangeiro em lugar algum como quem volta ao lugar da infância depois de anos de ausência». E assim é. Os lugares não ficam intactos à nossa espera.

Já não gosto de voltar com demasiada frequência. Gosto de dar tempo para que a saudade cresça — abúlica primeiro, indómita e fera depois. Mas regresso sempre. Faço o caminho em contramão em busca do que fui. É seguro este meu eterno retorno. Mas insisto: A ilha de onde parti não é a ilha aonde regresso. Foi soterrada com os olhos do meu avô António — azuis de tanto amor que me tinham.

A ilha do regresso é saudade feita basalto e os sulcos no rosto da minha mãe, trilhos de lava, são memórias coaguladas.

O meu Pico trago-o comigo. Sempre. Em mim habitam os fantasmas das baleias arpoadas. Do meu corpo nascem calhetas e fajãs e rebentam criptomérias. Hoje, a ilha sou eu.


Gina Ávila Macedo
Coordenadora editorial
Natural da ilha do Pico, residente no Porto, Portugal



(Texto lindo, escrito com muita sensibilidade, Gina, onde eu me revejo plenamente. Que orgulho em ser tua prima.)



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