Li algures que «nós somos o lugar que nos faz
falta» e sorri em sinal de concordância.
Tinha 18 anos e o meu olhar de menina abandonava
a ilha rumo ao futuro. Nunca esqueci aquela travessia do canal: as mãos grandes
e incultas do meu pai nas minhas e os meus olhos pequenos e turvos, cheios de
mar, postos na proa.
Naquele dia trouxe comigo o Castelete, a Poça do
Pano, o Caneiro, o Lajido, os Mistérios e os Cabeços e aquele Pico gigante que
eu ousei desafiar.
Naquele dia, juntamente com a linguiça, os
inhames e o queijo fresco — feito com o leite da Estrela pelas mãos bondosas da
minha mãe —, trouxe o grito das cagarras e o perfume doce da roca-de-velha, o
«Haja Saúde, minha jóia!» do Faria, a Folia do Espírito Santo, o cheiro do
cachimbo do Sr. Ferreira já coalhado nos livros da biblioteca, a Chamarrita, os
foguetes de S. Pedro, o rufar da caixa do José Faniquito e a paciência do
Mestre Viveza, que me ensinou o dó ré mi.
Digo que não poderia ter nascido noutra nesga de
terra. No entanto, os meus olhos de menina mudaram e o meu Pico também.
A Judite Jorge, minha conterrânea, escreveu que «ninguém é tão estrangeiro em
lugar algum como quem volta ao lugar da infância depois de anos de ausência». E
assim é. Os lugares não ficam intactos à nossa espera.
Já não gosto de voltar com demasiada frequência.
Gosto de dar tempo para que a saudade cresça — abúlica primeiro, indómita e
fera depois. Mas regresso sempre. Faço o caminho em contramão em busca do que
fui. É seguro este meu eterno retorno. Mas insisto: A ilha de onde parti não é
a ilha aonde regresso. Foi soterrada com os olhos do meu avô António — azuis de
tanto amor que me tinham.
A ilha do regresso é saudade feita basalto e os
sulcos no rosto da minha mãe, trilhos de lava, são memórias coaguladas.
O meu Pico trago-o comigo. Sempre. Em mim
habitam os fantasmas das baleias arpoadas. Do meu corpo nascem calhetas e fajãs
e rebentam criptomérias. Hoje, a ilha sou eu.
GINA ÁVILA MACEDO
Coordenadora editorial “Mundo
Açoreano”
Natural da ilha do Pico, residente
no Porto, Portugal
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